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domingo, 29 de maio de 2011

Lenitivo

Uma mosca não me deixou dormir a noite inteira [no sentido denotativo mesmo]. Pra mim, foi o sinal de alerta de que meu corpo está entrando em estado de putrefação. Desse jeito não demora a pousar um urubu na minha janela, espantando o beija-flor que costuma visitar minha roseira. [Aqui eu dou a opção de interpretar o período no sentido literal ou não.] Bom, lembro de, no meu ensino médio, ter aprendido que as frutas que a gente come estão apodrecendo. Óbvio. Mas a gente não para pra pensar nisso. Quem nunca fez careta com ranço de fruta verde na boca? O gostinho doce é proveniente da decomposição. Então, se é assim, faço em mim o reino das bactérias. Meu nome é Monera! Antes feia e cheia, que esguia e vazia. É tudo uma questão de ponto de vista. Depois, talvez a sobriedade do urubu seja mais confortante que a histeria do beija-flor.

 E como - mesmo com a perturbação da minha colega Musca domestica - acordei vestida de poesia, mais uma:

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As mulheres ocas
Vinícius de Moraes


"Headpiece filled with straw"
        T.S. Eliot, "The Hollow Men"

Nós somos as inorgânicas
Frias estátuas de talco
Com hálito de champagne
E pernas de salto alto
Nossa pele fluorescente
É doce e refrigerada
E em nossa conversa ausente
Tudo não quer dizer nada.

Nós somos as longilíneas
Lentas madonas de boate
Iluminamos as pistas
Com nossos rostos de opala.
Vamos em câmara lenta
Sem sorrir demasiado
E olhamos como sem ver
Com nossos olhos cromados.

Nós somos as sonolentas
Monjas do tédio inconsútil
Em nosso escuro convento
A ordem manda ser fútil
Fomos alunas bilíngües
De "Sacre-Coeur" e "Sion"
Mas adorar, só adoramos
A imagem do deus Mamon.

Nós somos as grã-funestas
Filhas do Ouro com a Miséria
O gênio nos enfastia
E a estupidez nos diverte.
Amamos a vida fria
E tudo o que nos espelha
Na asséptica companhia
Dos nossos machos-de-abelha.

Nós somos as bailarinas
Pressagas do cataclismo
Dançando a dança da moda
Na corda bamba do abismo.
Mas nada nos incomoda
De vez que há sempre quem paga
O luxo de entrar na roda
Em Arpels ou Balenciaga.

Nós somos as grã-funestas
As onézimas letais*
Dormimos a nossa sesta
Em ataúdes de cristal
E só tiramos do rosto
Nossa máscara de cal
Para o drinque do sol posto
Com o cronista social.

* Uma das categorias da Nova Gnomônia, de Jayme Ovalle, que classifica os seres e as coisas em: datas, parás, mozarlescos, kernianos e os onézimos, sendo estes conhecidos "pés-frios". Para maiores esclarecimentos, ver o capítulo [a crônica] "A Nova Gnomônia" em Crônicas da província do Brasil, de Manuel Bandeira.

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